*Artigo publicado da edição impressa da revista Gazeta do Povo Semanal de 8 de março de 2020.
O contexto atual é fruto de um jogo de interesses decorrente de olhos grandes que tomaram dimensão desproporcional no Brasil durante as discussões que antecederam a promulgação da Constituição Federal de 1988, olhos grandes estes voltados para milhares de novos cargos políticos no Executivo e Legislativo locais, bem como da distribuição e loteamento de escrivanias de cartórios em ofensa à regra do concurso público para estas últimas, a partir da possibilidade de criação de uma enxurrada de novos municípios.
A consequência nefasta foi a expansão exagerada do número de municipalidades em todas as regiões do Brasil, com o consequente aumento de despesas em razão das estruturas burocráticas necessárias a partir das emancipações de distritos, desacompanhada de fontes de receitas próprias, em especial as chamadas receitas tributárias.
Dados recentes da Secretaria do Tesouro Nacional demonstram que pouco mais de 6% de toda a arrecadação tributária no Brasil pertence aos municípios. Sob a perspectiva fiscal, este nem é o maior problema. Para tomar como exemplo o estado do Paraná, o Sistema de Informações do Tribunal de Contas paranaense, chamado de SIM-AM, aponta que nos municípios com população inferior a 5 mil habitantes a receita tributária decorrente do Imposto de Renda de servidores da prefeitura e da Câmara (imposto federal, mas que, no caso desses servidores, tem seu produto de arrecadação cobrado pela União, mas com garantia de permanência nos cofres do município) é maior que a receita do ISS e do IPTU, ambos impostos cuja legislação, cobrança e arrecadação cabem ao próprio município.
Quando se consideram municípios com população até 10 mil habitantes, a receita do IRPF dos servidores públicos da prefeitura e da Câmara, embora seja menor que a do ISS municipal, ainda assim supera a arrecadação do IPTU municipal. E o que isso significa, sob a perspectiva fática em tempos de PEC que objetiva, ou ao menos aparenta objetivar, extinguir pequenas municipalidades no Brasil? Que essas pequenas municipalidades, além de serem inviáveis sob o ponto de vista fiscal e financeiro, não têm nem sequer uma estrutura mínima para lançar, cobrar e arrecadar seus próprios tributos, dependendo de repasses federais e estaduais via fundos de participação (FPM) e/ou via transferências voluntárias a partir de convênios para financiarem, com dinheiro do estado no qual estão situados, itens básicos como transporte escolar, merenda, manutenção de asfalto etc.
Parece ser lógico defender a extinção dessas pequenas municipalidades com sua incorporação a outros maiores, ou sua junção. Ocorre que, lamentavelmente, o processo de decisão política não é tão racional quanto a expectativa do país. Isso explica em boa parte a falta de uma discussão séria sobre o assunto. E assim vamos tropeçando em nosso próprio sistema federativo, combalido e afastado sob a perspectiva jurídico-política daquilo que a racionalidade administrativa e fiscal impõe.
Autor: Flávio Berti, doutor em Direito do Estado e Procurador-Geral do Ministério Público de Contas do Paraná, é professor do curso de Direito e coordenador da pós-graduação em Direito Tributário da Universidade Positivo.